sexta-feira, 11 de maio de 2018

Proteção a civis: O Exército Brasileiro e os ensinamentos homogêneos em cenários heterogêneos das missões de paz


Por: Luiz Claudio Talavera De Azeredo

Eram cerca de 07h30 da manhã, do dia 21 de novembro de 2016. Após semanas de crescentes tensões, escutam-se os primeiros tiros do confronto entre grupos armados, de mesma religião e antigos aliados. Eles lutavam para controlar a Cidade de Bria, centro urbano mais importante de uma região produtora de diamantes na República Centro-Africana. Ao mesmo tempo que se tentava obter a adequada consciência situacional do conflito e se trabalhava para cumprir as tarefas essenciais do mandato da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA), centenas de civis começaram a buscar proteção junto à base da ONU, de onde dirigíamos as operações.

Os poucos soldados que guardavam as instalações foram deslocados cerca de 50 metros à frente do perímetro da base, realizando um cordão de isolamento que protegesse, também, os civis que chegavam sem parar e que se reuniam sob a sombra de uma grande árvore frondosa, único abrigo disponível naquele momento. Em 30 minutos, as necessidades naturais daquela massa humana começaram a ser relatadas ao centro de operações. Senhoras em trabalho de parto, centenas de mulheres e crianças solicitando água e dezenas de pessoas precisando de atendimento médico, entre outras demandas. Tais ações materializam os preceitos doutrinários sobre proteção de civis, aspecto central das missões de paz na ONU desdobradas pelo mundo e obrigação mínima dos Estados nacionais estabelecidos. A proteção física contra a violência iminente representa, apenas, uma parcela do preconizado para a adequada proteção de civis. 

O atendimento das necessidades básicas humanas e o estabelecimento de estruturas de abrigo e de mecanismos de assistência social mínimos são outras etapas essenciais, de acordo com os padrões estabelecidos internacionalmente. Naquele dia, o conflito encerrou-se perto de duas horas após iniciado e gerou um campo de deslocados internos ao lado da base da ONU com, aproximadamente, cinco mil pessoas (15% da população da cidade), que se estabeleceram no local. Várias lições advieram dessa experiência, uma vez que o componente militar, forçosamente, necessitou interagir isoladamente com os civis abrigados no campo improvisado de deslocados, pela simples inexistência de outras instituições especializadas em atendimento humanitário no local.

O primeiro ensinamento foi obtido antes mesmo de finalizadas as primeiras 24 horas da formação do campo: soldados não são capazes de prover - sozinhos - a proteção de civis, conforme o padrão mínimo acima apresentado, em que pese a capacidade logística e de apoio de saúde naturais no desdobramento de tropas militares. Atores do campo humanitário (assistencial, saúde etc.) civil, policial, político e da comunidade protegida necessitam agir coordenada e cooperativamente para obter o nível mínimo de proteção de civis. No caso em questão, as ações desencadeadas pelo contingente militar não foram capazes de suprir as necessidades da população a ser protegida. Apesar do fornecimento de água e gêneros, os itens oferecidos tornavam-se geradores de problemas maiores, e não de soluções, pois não foram disponibilizados de acordo com padrões sistematizados de atendimento humanitário.

A distribuição espacial no campo era outra fonte de fortes atritos. O posicionamento irregular das famílias e a não delimitação de áreas para uso comum e privado geraram muitas brigas, além dos transtornos sanitários e de segurança. Um sistema de comunicação comunitário mínimo com as famílias abrigadas era outro desafio a ser vencido. As melhores ações/intenções eram potenciais problemas, caso não fossem do conhecimento de toda a comunidade. Enfim, uma miríade de adversidades surgia, e, além da proteção física contra eventuais ações de grupos armados, havia outras carências a serem atendidas. Ocorreu pequena melhora da situação a partir de ajustes de procedimentos e de gestão, envolvendo os poucos militares, os civis da ONU e os agentes de entidades humanitárias presentes no terreno. 

No entanto, após esse avanço, houve estagnação seguida de piora da conjuntura geral. Todos os esforços não eram capazes de atender às crescentes demandas. Aconteceram violentos protestos da comunidade abrigada no campo, que, eventualmente, realizava manifestações contra ações específicas das tropas ou quando era manipulada por grupos armados que buscavam atender à própria agenda de interesses. Como exemplo, um dos protestos desencadeou-se após intervenção da tropa para impedir o linchamento de um cidadão julgado persona non grata, que, desavisadamente, errou o caminho e acabou cruzando com a motocicleta na frente do campo de deslocados. O quadro geral só foi estabilizado após o recebimento de reforços materiais significativos e, principalmente, o fortalecimento da estrutura de atendimento à população. 

Isso ocorreu com a chegada das instituições responsáveis por ações de caráter político, comunitário, logístico, humanitário, policial, sanitário e militar, que passaram a atuar coordenadas, promovendo as etapas doutrinárias de proteção de civis já abordadas, ainda que com limitações. Para ampliar o que foi descrito, é lícito concluir, com base na literatura e em outras crises vividas na República Centro-Africana, que os ensinamentos apresentados são válidos para conflitos ou situações em que a proteção de civis deve ser efetivada, como, por exemplo, a crise migratória no Mediterrâneo, o conflito na Síria e, no contexto nacional, a acolhida dos imigrantes venezuelanos em Roraima e a intervenção federal no Rio de Janeiro. Em síntese: a proteção de civis não pode ser assegurada, exclusivamente, por contingentes militares.

Esse entendimento apresentado é bastante conhecido, embora não seja comumente executado. No Brasil, infelizmente, há muitos exemplos da atuação isolada de contingentes militares que deveriam ser acompanhados por instituições governamentais ou civis. Tal lacuna só pode ser preenchida pela estrutura militar em caráter parcial, temporário e excepcional, sob pena de não atender efetivamente a proteção buscada para os civis. A assertiva é particularmente útil no momento em que resultados positivos da intervenção federal no Rio de Janeiro e da operação de acolhida de imigrantes em Roraima começam a ser anunciados. 

É importante ressaltar que apenas com a participação efetiva desses diferentes atores os benefícios das ações de proteção civis poderão ser implementados, efetivamente, junto às comunidades protegidas. Para isso, devem estar envolvidos os poderes constituídos nos três níveis de governo, as organizações não governamentais, as agências e os organismos nacionais e internacionais, além das instituições comunitárias e de classe, entre outros protagonistas da sociedade organizada. Caso contrário, há o risco de que a melhora da situação verificada possa estagnar e, até mesmo, deteriorar-se, por fatores diversos, como a dinâmica da criminalidade.

Fonte: EBlog

Nota: O Autor do presente artigo, é Ten.-Cel da Arma de Cavalaria do Exército Brasileiro, tendo atuado como Chefe da Seção de Operações do Setor Leste da Missão, no Estado-Maior na Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA).

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