Por: Luiz Claudio Talavera De Azeredo
Eram
cerca de 07h30 da manhã, do dia 21 de novembro de 2016. Após
semanas de crescentes tensões, escutam-se os primeiros tiros do
confronto entre grupos armados, de mesma religião e antigos aliados.
Eles lutavam para controlar a Cidade de Bria, centro urbano mais
importante de uma região produtora de diamantes na República
Centro-Africana. Ao
mesmo tempo que se tentava obter a adequada consciência situacional
do conflito e se trabalhava para cumprir as tarefas essenciais do
mandato da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas
para Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA),
centenas de civis começaram a buscar proteção junto à base da
ONU, de onde dirigíamos as operações.
Os poucos soldados que
guardavam as instalações foram deslocados cerca de 50 metros à
frente do perímetro da base, realizando um cordão de isolamento que
protegesse, também, os civis que chegavam sem parar e que se reuniam
sob a sombra de uma grande árvore frondosa, único abrigo disponível
naquele momento. Em
30 minutos, as necessidades naturais daquela massa humana começaram
a ser relatadas ao centro de operações. Senhoras em trabalho de
parto, centenas de mulheres e crianças solicitando água e dezenas
de pessoas precisando de atendimento médico, entre outras demandas.
Tais ações materializam os preceitos doutrinários sobre proteção
de civis, aspecto central das missões de paz na ONU desdobradas pelo
mundo e obrigação mínima dos Estados nacionais estabelecidos. A
proteção física contra a violência iminente representa, apenas,
uma parcela do preconizado para a adequada proteção de civis.
O
atendimento das necessidades básicas humanas e o estabelecimento de
estruturas de abrigo e de mecanismos de assistência social mínimos
são outras etapas essenciais, de acordo com os padrões
estabelecidos internacionalmente. Naquele
dia, o conflito encerrou-se perto de duas horas após iniciado e
gerou um campo de deslocados internos ao lado da base da ONU com,
aproximadamente, cinco mil pessoas (15% da população da cidade),
que se estabeleceram no local. Várias lições advieram dessa
experiência, uma vez que o componente militar, forçosamente,
necessitou interagir isoladamente com os civis abrigados no campo
improvisado de deslocados, pela simples inexistência de outras
instituições especializadas em atendimento humanitário no local.
O
primeiro ensinamento foi obtido antes mesmo de finalizadas as
primeiras 24 horas da formação do campo: soldados não são capazes
de prover - sozinhos - a proteção de civis, conforme o padrão
mínimo acima apresentado, em que pese a capacidade logística e de
apoio de saúde naturais no desdobramento de tropas militares. Atores
do campo humanitário (assistencial, saúde etc.) civil, policial,
político e da comunidade protegida necessitam agir coordenada e
cooperativamente para obter o nível mínimo de proteção de civis. No
caso em questão, as ações desencadeadas pelo contingente militar
não foram capazes de suprir as necessidades da população a ser
protegida. Apesar do fornecimento de água e gêneros, os itens
oferecidos tornavam-se geradores de problemas maiores, e não de
soluções, pois não foram disponibilizados de acordo com padrões
sistematizados de atendimento humanitário.
A distribuição espacial
no campo era outra fonte de fortes atritos. O posicionamento
irregular das famílias e a não delimitação de áreas para uso
comum e privado geraram muitas brigas, além dos transtornos
sanitários e de segurança. Um
sistema de comunicação comunitário mínimo com as famílias
abrigadas era outro desafio a ser vencido. As melhores
ações/intenções eram potenciais problemas, caso não fossem do
conhecimento de toda a comunidade. Enfim,
uma miríade de adversidades surgia, e, além da proteção física
contra eventuais ações de grupos armados, havia outras carências a
serem atendidas. Ocorreu pequena melhora da situação a partir de
ajustes de procedimentos e de gestão, envolvendo os poucos
militares, os civis da ONU e os agentes de entidades humanitárias
presentes no terreno.
No entanto, após esse avanço, houve
estagnação seguida de piora da conjuntura geral. Todos os esforços
não eram capazes de atender às crescentes demandas. Aconteceram
violentos protestos da comunidade abrigada no campo, que,
eventualmente, realizava manifestações contra ações específicas
das tropas ou quando era manipulada por grupos armados que buscavam
atender à própria agenda de interesses. Como exemplo, um dos
protestos desencadeou-se após intervenção da tropa para impedir o
linchamento de um cidadão julgado persona non grata,
que, desavisadamente, errou o caminho e acabou cruzando com a
motocicleta na frente do campo de deslocados. O
quadro geral só foi estabilizado após o recebimento de reforços
materiais significativos e, principalmente, o fortalecimento da
estrutura de atendimento à população.
Isso ocorreu com a chegada
das instituições responsáveis por ações de caráter político,
comunitário, logístico, humanitário, policial, sanitário e
militar, que passaram a atuar coordenadas, promovendo as etapas
doutrinárias de proteção de civis já abordadas, ainda que com
limitações. Para
ampliar o que foi descrito, é lícito concluir, com base na
literatura e em outras crises vividas na República Centro-Africana,
que os ensinamentos apresentados são válidos para conflitos ou
situações em que a proteção de civis deve ser efetivada, como,
por exemplo, a crise migratória no Mediterrâneo, o conflito na
Síria e, no contexto nacional, a acolhida dos imigrantes
venezuelanos em Roraima e a intervenção federal no Rio de Janeiro.
Em síntese: a proteção de civis não pode ser assegurada,
exclusivamente, por contingentes militares.
Esse
entendimento apresentado é bastante conhecido, embora não seja
comumente executado. No Brasil, infelizmente, há muitos exemplos da
atuação isolada de contingentes militares que deveriam ser
acompanhados por instituições governamentais ou civis. Tal lacuna
só pode ser preenchida pela estrutura militar em caráter parcial,
temporário e excepcional, sob pena de não atender efetivamente a
proteção buscada para os civis. A
assertiva é particularmente útil no momento em que resultados
positivos da intervenção federal no Rio de Janeiro e da operação
de acolhida de imigrantes em Roraima começam a ser anunciados.
É
importante ressaltar que apenas com a participação efetiva desses
diferentes atores os benefícios das ações de proteção civis
poderão ser implementados, efetivamente, junto às comunidades
protegidas. Para
isso, devem estar envolvidos os poderes constituídos nos três
níveis de governo, as organizações não governamentais, as
agências e os organismos nacionais e internacionais, além das
instituições comunitárias e de classe, entre outros protagonistas
da sociedade organizada. Caso contrário, há o risco de que a
melhora da situação verificada possa estagnar e, até mesmo,
deteriorar-se, por fatores diversos, como a dinâmica da
criminalidade.
Fonte: EBlog
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