O anglo-brasileiro Francis Hallawell, o 'Chico da BBC', usava aparelho 'que pesava uns 15 quilos' para gravar - em disco - os sons dos soldados e alojamentos da FEB (Foto: BBC) |
Por: Redação OD
"Ô, Félix, de onde você está chegando?"
"Eu tô chegando do front."
"Você parece cansado."
"Eu tô o dia todo sem dormir, tô muito cansado."
"Sem dormir? Mas há quantas horas que você não dorme?"
"48 horas."
"Está caindo muita coisa lá na frente?"
"Tá caindo muita granada, muita bomba, metralhadora..."
Esse
diálogo, entre um correspondente de guerra e um pracinha voltando da
linha de combate na Segunda Guerra tem uma grande diferença em
relação aos registros feitos pelo pequeno grupo de jornalistas
brasileiros enviados à Itália em 1944 para acompanhar a Força
Expedicionária Brasileira (FEB): ele foi gravado em áudio.
Ele
faz parte de um precioso material colhido no front pelo
correspondente do Serviço Brasileiro da BBC, o anglo-brasileiro
Francis Hallawell, e que está sendo resgatado pela BBC Brasil para
comemorar seus 80 anos. Munido de um complexo equipamento de gravação
e com auxílio de uma unidade móvel - uma ambulância convertida em
estúdio - Hallawell foi o único jornalista brasileiro a captar as
vozes dos soldados, dos oficiais e do pessoal de apoio (como
enfermeiras) do contingente de mais de 25 mil pessoas enviado para
lutar ao lado do Exército americano contra forças nazistas e
fascistas. Suas
reportagens eram gravadas e transmitidas de Londres pelo Serviço
Brasileiro da BBC em ondas curtas e por retransmissões de rádios
brasileiras, e eram ouvidas em todos os cantos do Brasil.
Hallawell,
o "Chico da BBC", como era conhecido pelos pracinhas - e,
depois, pelo público -, levou as vozes dos combatentes brasileiros
às suas famílias e a um país ansioso por notícias. Pelos
cerca de oito meses em que as tropas estiveram em combate (de
setembro de 1944 ao final de abril de 1945), suas reportagens tinham
audiência cativa no horário nobre dos anos de ouro do rádio."Muitos
(ouvintes) já morreram, mas os mais idosos, todos se lembram dele,
com muito carinho", conta à BBC Brasil Rose Esquenazi,
pesquisadora sobre TV e rádio no Brasil, professora da PUC-RJ e
autora de O Rádio na Segunda Guerra: no ar, Francis Hallawell, o
Chico da BBC (...) As
pessoas queriam que a guerra acabasse, e o Chico trazia as
informações lá do front, onde estavam os filhos, os maridos e os
noivos." E
todo mundo ouvia rádio. Quem não tinha o aparelho, ouvia num bar ou
na casa da vizinha.
Jornalismo
'positivo'
Pelo
menos 12 reportagens de Hallawell foram encontradas pela pesquisa.
Entre elas, uma sobre uma visita a feridos em um hospital. Outra
acompanha uma missa na catedral de Pisa em que os militares cantam o
Hino Nacional. E uma terceira retrata um programa de calouros em um
alojamento da FEB em que soldados satirizam Hitler e Mussolini com
versões de canções conhecidas da época. Elas
estavam registradas em uma coleção de 36 discos 78 rpm produzidos
pela BBC e que pertence à Embaixada Brasileira em Londres. Esta
cedeu a coleção ao pesquisador e professor Vinicius Mariano de
Carvalho, do Brazil Institute do King's College London, que, por sua
vez, as repassou em formato digital para a BBC Brasil. Mariano
de Carvalho pesquisa os sambas e marchinhas compostos por pracinhas
em plena guerra - e cujas únicas gravações in loco são as feitas
por Hallawell. O material revela um lado da guerra pouco explorado,
da vida no front no intervalo entre batalhas.
A
reedição deste material, gravado seis anos após a criação do
Serviço Latino-Americano - em espanhol e português - da BBC, é um
dos elementos que marcam os 80 anos da BBC Brasil, que serão
completados em 14 de março de 2018. As
reportagens em áudio focam no elemento humano, no dia a dia dos
acampamentos e alojamentos, nos momentos de lazer e diversão do
soldados - traz, enfim, o lado humano da cobertura da guerra. Segundo
dados do Exército, o efetivo da Força Expedicionária Brasileira
foi de 25.334 pessoas. Dessas, 443 morreram, 2.722 foram feridas e 23
desapareceram.
Mas a tragédia da guerra surgia como pano de fundo
nas reportagens de Hallawell. "O
Chico não fazia noticiário crítico, não falava dos horrores da
guerra, não falava de derrotas", diz Esquenazi. "Fazia
matérias de comportamento, era um jornalismo 'positivo'... (através
dessas reportagens) você não tinha noção do perigo, da tragédia
da guerra." Uma
razão para isso, sugere a pesquisadora, está na forte censura do
material dos correspondentes. "Era difícil fazer um noticiário
mais realista. Havia três níveis de censura, a dos militares
brasileiros, a dos militares americanos e a do Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo."
Correspondente
por acaso
A
trajetória de Hallawell não era típica de um correspondente.
Nascido em Porto Alegre, filho de pais ingleses e parcialmente
educado em um internato na Inglaterra, ele era engenheiro e foi parar
no Serviço Brasileiro da BBC basicamente por falar português e
querer colaborar com o esforço de guerra. Por
outro lado, o "Chico da BBC" era um bom comunicador, tinha
jeito no microfone e empatia com os entrevistados. Esquenazi
diz que, apesar do sotaque inglês, sua voz, quando surgia no rádio,
"tinha certa intimidade com o ouvido do brasileiro". De
fato, nas entrevistas feitas no Natal de 1944, o único celebrado
pelos pracinhas na Segunda Guerra, Chico passa a impressão de ser
amigo das pessoas ao microfone. Para Esquenazi, "o Chico trazia
humanidade".
Sua
linguagem é simples, direta e calorosa, como quando fala em "fazer
um gostoso vatapá" ou pede ao sargento da cozinha que revele
"em segredo" o menu dos expedicionários, ou quando anuncia
a música de Noel (que ele pronuncia "No-hell"') Rosa "sem
a qual nenhum Natal brasileiro seria completo". As
entrevistas eram gravadas em um disco de vidro, através de um
aparelho portátil projetado pela BBC especialmente para seus
correspondentes de guerra, que, segundo relato do próprio Hallawell
à BBC, "era uma caixa pesando uns 15 quilos, muito parecida com
aquelas vitrolas portáteis que nos anos de 1920 e 1930 a gente
levava para os nossos piqueniques". Os
discos eram levados "de jipe a Florença", e, de lá,
enviados a Roma pelo malote do Exército Americano, de onde eram
"irradiados" para Londres. Nos estúdios da BBC, as
reportagens eram gravadas em acetato e transmitidas ao longo da
programação do Serviço Brasileiro.
'Menu de Natal' teve ravióli com peru, castanhas e rabanada, tudo 'regado com um bom vinho italiano' (Foto: Foto da pesquisa de Vinicius Mariano de Carvalho, King's College) |
Ele era auxiliado por Douglas Farley, um engenheiro de som da BBC, que operava o aparelho e a unidade móvel de gravação. Além de gravar reportagens, Hallawell enviava crônicas - pelo telex do Exército Americano - que eram lidas por locutores em Londres. Muitas vezes, ele enviava crônicas escritas pelos correspondentes dos jornais brasileiros na Itália, entre eles Rubem Braga e Joel Silveira. Após a guerra, Hallawell voltou ao Brasil, onde foi gerente de uma fabricante inglesa de locomotivas. Ele morreu em 2004, em Petrópolis. Nos
poucos meses em que praticou jornalismo, conseguiu registrar uma
visão única dos pracinhas em um momento marcante da história do
país. "É
um material de enorme valor não apenas para a história do
Jornalismo, como também para a história do Brasil. Ao longo de
2018, outros tesouros deste arquivo único serão divulgados para o
público", diz Silvia Salek, diretora de redação da BBC
Brasil.
FONTE: BBC Brasil
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