terça-feira, 7 de junho de 2016

Por que transformar o Exército?


Por: Alessandro Visacro
Muito embora seja incontestável a subordinação da guerra à política, na estrita acepção de Clausewitz, limitar seu entendimento apenas a essa relação de subordinação obscurece o fato de que, antes de ser um fenômeno político, a guerra é também um fenômeno social. Essa assertiva, aparentemente trivial, leva-nos à conclusão de que transformações na conduta da guerra são, antes de tudo, decorrentes de transformações sociais. No momento em que a humanidade deixa a era industrial para ingressar na era da informação, passando por rápidas e profundas alterações, há que se procurar entender, de forma objetiva, como essas mudanças afetam a natureza dos conflitos armados e impõem necessariamente uma redefinição e uma ampliação das agendas nacionais de segurança e defesa. 

Essa talvez seja a questão central dos esforços de especialistas que tentam delinear o ambiente estratégico futuro, dotando as instituições militares de capacidades que lhes permitam, de fato, expandir seu repertório de missões para fazer frente a complexas e difusas ameaças. A crença equivocada de que se adequar às exigências do século XXI restringe-se, tão somente, à mera aquisição de moderna tecnologia pode frustrar as expectativas dos soldados. Ao contrário, é preciso “pensar” em termos de um ambiente político, econômico e social significativamente mais complexo. 
Assim como já aconteceu no passado, a forma tradicional de entender e pensar a respeito da guerra tornou-se incompatível com novas realidades. Porém, novas ideias se chocam com dogmas profundamente arraigados na ortodoxia do pensamento castrense conservador, fazendo com que conceitos inovadores se transformem em mero recurso semântico. Na maioria dos exércitos do planeta, persiste o incondicional apego a preceitos da era industrial e à lógica cartesiana e mecanicista que lhe é própria.

Desde a segunda metade do século XVII, o objetivo precípuo da “defesa” tem sido a preservação do Estado, bem como a consecução de suas metas políticas, ante as ameaças provenientes de outros Estados nacionais. Essa característica fundamental foi acentuada, nos séculos XVIII e XIX, pelas profundas transformações políticas, sociais, econômicas, militares e científico-tecnológicas, advindas das revoluções Francesa e Industrial. As duas guerras mundiais consagraram o estereótipo da “guerra industrial” como dogma, tanto para a formulação de políticas de defesa quanto para a destinação das forças armadas. 
É inegável que o senso comum conserva um entendimento da guerra limitado, essencialmente, ao conflito interestatal, protagonizado por exércitos nacionais permanentes e orientado para a consecução de objetivos políticos na estrita acepção de Clausewitz. É para esse tipo de guerra que as forças armadas, em todo o planeta, têm se organizado, treinado e desenvolvido suas capacidades.Todavia, as primeiras décadas do século XXI impõem uma nova realidade. Vivemos em uma era de predomínio absoluto da violência armada não estatal. Um período da história no qual o pretenso monopólio estatal sobre a aplicação da força coercitiva foi, definitivamente, quebrado. Trata-se de uma verdadeira ruptura paradigmática. 
De tal sorte que, até mesmo, as mais modernas e bem treinadas unidades de combate se mostram inadequadas e ineficazes diante do atual ambiente de conflito. A constatação de que a crença ocidental no poder irrestrito dos canhões não mais atende às demandas de defesa de uma nova era tem motivado, ao longo dos últimos anos, um profundo debate acerca da condução da guerra. Em busca de respostas satisfatórias para “novos” desafios e “novas” ameaças, especialistas, em todo o mundo, têm se dedicado ao estudo prospectivo dos conflitos do século XXI, esperando definir suas características fundamentais e, com isso, orientar adequadamente a evolução de suas forças armadas para uma ordem pós-industrial.
Muitos céticos, munidos do pensamento conservador, refutam cabalmente a ideia de que seja necessária uma “releitura” dos conflitos armados. Afinal, “pequenas guerras” e atores armados não estatais, como, por exemplo, bandoleiros, salteadores, guerrilheiros, insurretos e terroristas sempre fizeram parte da história. Como admitir, porém, que a humanidade deixa a “idade do aço” e ingressa na era da informação, passando, mais uma vez, por profundas transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais, sem reconhecer que tal fato exerce influência direta sobre a conduta da guerra? Ou como explicar os repetidos insucessos das mais poderosas forças armadas do planeta, imersas em intermináveis e inconclusivos conflitos irregulares assimétricos?
De fato, o curso da história da humanidade insere os conflitos armados em um contexto social, político, geopolítico, econômico, ambiental e científico-tecnológico mais amplo. É a conjunção desses fatores que define a natureza da guerra, e não o contrário! Todavia, o apego incondicional a uma visão ortodoxa dos conflitos armados e, por conseguinte, do próprio papel idealizado para as forças armadas em uma ordem vestfaliana, restringe, sobremaneira, a readequação das instituições militares à era da informação, obstruindo o uso coerente e eficaz do poderio bélico convencional. 
Na verdade, as áreas conflagradas ao redor do mundo têm explicitamente demonstrado, ao longo das últimas décadas, o quão inócuo e anacrônico se tornou o uso da força militar calcado nos preceitos e parâmetros da era industrial. Ainda assim, estadistas e, sobretudo, soldados continuam obcecados pela panaceia da batalha decisiva. Tal fato explica, até certo ponto, a incidência, cada vez maior, de políticas de Estado inconsistentes, apoiadas em estratégias incoerentes.

A “globalização da violência” apresenta novos desafios, exigindo esforços bem mais abrangentes do que os estreitos limites do campo militar podem oferecer. Ademais, a tecnologia da informação, que permite o fácil estabelecimento de conexões entre redes globais de cooperação, aliada à busca por formas alternativas de financiamento, tem aproximado organizações extremistas e facções criminosas transnacionais. É provável que os exércitos nacionais continuem sendo facilmente atraídos para lutarem, sob a ríspida censura da opinião pública, em conflitos prolongados, em que uma vitória rápida e decisiva não possa ser obtida, simplesmente, pela superioridade bélica convencional. 
Portanto, tornou-se indispensável reavaliar os preceitos de segurança e defesa, indo muito além da simples capacitação de forças convencionais para a contrainsurgência. Uma nova abordagem deve ter como ponto de partida a redefinição das ameaças à sociedade, incluindo atores não estatais de atuação doméstica e transnacional.Ao contrário do que muitos creem, a aquisição de novas capacidades para operar em um amplo espectro de conflitos não implica em perda ou em redução de eficiência nas táticas convencionais de combate terrestre. 
As forças armadas não devem jamais descuidar de suas “missões tradicionais”, sob pena de se tornarem débeis e ineficazes, perdendo seu poder dissuasório. Contudo, para fazer face às ameaças deste século, devem redimensionar seu emprego e suas aptidões nos mais diversos espectros de conflitos. A visão dogmática que estereotipa a guerra apenas como um confronto formal entre dois exércitos regulares deve, finalmente, ser posta de lado.

FONTE: eblog.com.br

Nota da Redação: O Autor do artigo, Alessandro Visacro é Coronel da Arma de Infantaria do Exército Brasileiro, atualmente Comandante do 1º Batalhão de Forças Especiais (1º BFEsp), autor de inúmeros artigos publicados em revistas especializadas, é autor de Guerra Irregular - terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história (2009) e Lawrence da Arábia (2010).

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